domingo, 30 de março de 2014

AINDA JOSÉ DE ALENCAR


        A PRECE

       

        A tarde ia morrendo,
         O sol declinava no horizonte e deleitava-se sobre as grandes florestas que iluminava com seus últimos raios.
         A luz frouxa e suave do ocaso, deslizando pela verde alcatifa, enrolava-se como ondas de ouro e de púrpura sobre a folhagem das árvores.
          Os espinheiros silvestres desatavam as flores alvas de delicadas; e o ouricuri abria as suas palmas mais novas, para receber no seu cálice o orvalho da noite. Os animais retardados procuravam a pousada; enquanto a juriti, chamando a companheira, soltava os arrulhos doces e saudosos com que se despede do dia.
            Um concerto de notas graves saudava o pôr-do-sol, e confundia-se com o rumor da cascata, que parecia quebrar a aspereza de sua queda, e ceder à doce influência da tarde.
            Era a Ave-Maria.
            Como é solene e grave no meio das nossas matas a hora do crepúsculo, em que a natureza se ajoelha aos pés do Criador para murmurar a prece da noite!
             Essas grandes sombras das árvores que se estendem pela planície; essas gradações infinitas da luz pelas quebradas da montanha; esses raios perdidos, que, esvazando-se pelo rendado da folhagem vão brincar um momento sobre a areia; tudo respira uma poesia imensa que enche a alma.
              O urutau no fundo da mata solta as suas notas graves e sonoras, que, reboando pelas longas crastas de verdura, vão ecoar ao longe como o toque lento e pausado do ângelus.
              A brisa, roçando as grimpas da floresta, traz um débio sussurro, que parece o último eco dos rumores do dia, ou derradeiro suspiro da tarde que morre.
               Todas as pessoas reunidas na esplanada sentiam mais ou menos a impressão poderosa desta hora solene, e cediam involuntariamente a esse sentimento vago, que não é bem tristeza, mas respeito misturado de um certo temor.
                 De repente, os sons melancólicos de um clarim prolongaram-se pelo ar quebrando o concerto da tarde; era um dos aventureiros que tocava a Ave-Maria.
                 Todos se descobriram.
                 D. Antônio de Mariz, adiantando-se até à beira da esplanada para o lado do ocaso, tirou o chapéu e ajoelhou.
                 Ao redor deles vieram grupar-se sua mulher, as duas moças, Álvaro e D. Diogo; os aventureiros, formando um grande arco de círculo, ajoelharam-se a alguns passos de distância.
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                  Durante o momento em que o rei da luz, supenso no horizonte, lançava ainda um olhar sobre a terra, todos se concentravam em um fundo de recolhimento, e diziam uma oração muda que apenas agitava imperceptivelmente os lábios.
                    Por fim o sol escondeu-se; Aires Gomes estendeu o mosquete sobre o precipício, e um tiro saudou o ocaso.
                    Era noite.
                    Todos se ergueram; os aventureiros cortejaram e foram-se retirando a pouco e pouco.
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Trecho do livro: O Guarani
                           Capítulo: 07; pag. 54
                           Coleção Vestibular
                           ESTADÃO – O ESTADO DE SÃO PAULO
                           KLICK EDITORA

 OBSERVAÇÃO:  A descrição é linda; a gente se transporta ao cenário....
                           

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