sábado, 30 de abril de 2016

MÁRIO DE ANDRADE E A MÚSICA (02)

                              continuação......

          A primeira fotografia fixa os professores do Conservatório no almoço em que comemoram a promoção do companheiro mais jovem. A imagem é convencional e respeitosa, desde a colocação dos figurantes, que se distribuem de acordo com a idade e o merecimento. Estão todos de preto, numa frontalidade dominante e marcam no centro do grupo o lugar de chefe na figura impositiva de Gomes Cardim, o único de capa e levemente de três quartos. Uma certa fantasia dos chapéus talvez chamasse a atenção de Machado de Assis, que notaria, certamente, que os mais moços do grupo, Mário de Andrade e Samuel Machado dos Santos estão sérios e empertigados, meio escondidos na fila dos fundos. As bengalas e guarda-chuvas, ao contrário do que ocorre em nosso romance romântico, não interrompem com a ameaça do gesto a hirta severidade da composição. Permanecem seguras em posição vertical, à espera do momento de servir. A nota dissonante só se manifesta na imagem do maestro Rocchi, que tendo aportado no Brasil com uma Companhia de Ópera, nunca abandonou uma certa postura boêmia, que se traduz na colaboração displicente do chapéu, no colete branco de fustão e na gravata lavalière.
                                     continua na próxima postagem.....
 
Texto extraído de "Caderno de Sábado"
JORNAL DA TARDE
Data: Sábado - 6-1-96
Jornal da Tarde pertencia ao jornal
"O ESTADO DE SÃO PAULO"
 
                                               

sexta-feira, 29 de abril de 2016

MÁRIO DE ANDRADE E A MÚSICA (01)

                                              MÁRIO DE ANDRADE E A MÚSICA

                            Nos ano 20, o escritor paulista organizou um curso sobre Estética Musical. Uma de suas alunas copiou as aulas das anotações do professor: Agora essa notas foram cuidadosamente organizadas pela pesquisadora Flávia Camargo Toni do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP e saem em livro ("Introdução à Estética Musical) no dia 15 deste mês. O Caderno de Sábado reproduz o elegante prefácio da professora Gilda de Melo e Souza, sobrinha do escritor modernista
 
                                                        A sublimação de um ato de amor
                                                            *Por Gilda de Melo e Souza
 
           Nesta apresentação não pretendo comentar, com a minúcia merecida, o trabalho inteligente e consciencioso de Flávia Camargo Toni, localizando, organizando e anotando o pequeno compêndio de Estética Musical que Mário de Andrade deixou incompleto. Quero apenas chamar a atenção para a importância do achado e transmitir ao leitor algumas observações que foram me ocorrendo, à medida que me familiarizava com o texto e procurava inscrevê-lo em seu momento.
            O período que se segue à Semana de Arte Moderna e vai de 1922 a 1928 é fundamental na trajetória do grande escritor e deve ser tomado como referência para que se entenda a sua evolução. A batalha do Modernismo foi para todos que nela tomaram parte um divisor e águas, uma ruptura, mas para Mário de Andrade representou o primeiro momento de um desafio. A 20 de janeiro era nomeado catedrático de História da Música do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo; vinte e dois dias depois, de13 a 18 de fevereiro, tomava parte na Semana de Arte Moderna, onde seria um dos representantes mais visados pela estrondosa vaia do Municipal. Duas fotografias da época - hoje clássicas - registraram os dois acontecimentos e prenunciam o que será, daí em diante, a dupla jornada desse moço de vinte e nove anos.
                                                                    continua na próxima postagem.......
 
Texto extraído de - Caderno de Sábado -
Jornal da Tarde
Data: Sábado - 6-1-96
"Jornal da Tarde" pertencia ao jornal
"O ESTADO DE SÃO PAULO"

sábado, 23 de abril de 2016

ÁLVARO DE CAMPOS.... RICARDO REIS ...... ALBERTO CAEIRO....(02)

                               continuação da postagem anterior....

             Como escrevo em nome desses três?....
             Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstrata, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterônimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterônimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afetividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de "ténue" à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer "eu próprio" em vez de "eu mesmo", etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado.
              O difícil para mim é escrever a prosa de Reis - ainda inédita - ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso.
 
                                                   ( Excerto de uma carta de Fernando Pessoa dirigida
                                                   a Adolfo Casais Monteiro,  sobre a origem dos   seus
                                                   heterônimos. Publicada na revista "Presença", nº 49,
                                                   Junho, 1937 ).
 
Texto extraído do livro: POESIAS de Álvaro de Campos
OBRAS COMPLETAS DE FERNANDO PESSOA
COLEÇÃO POESIA * EDIÇÕES ÁTICA
Lisboa
Março de 1980

sexta-feira, 22 de abril de 2016

ÁLVARO DE CAMPOS...RICARDO REIS....ALBERTO CAEIRO....(01)

                        
                                  Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1,30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inatividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente s curvar-se. Cara rapada todos - o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo porém liso e normalmente apartado ao lado, monóculo.
                                   Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase  nenhuma - só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de Jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latino por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o "Opiário". Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.
                                                                                             continua na próxima postagem.....
 
Texto extraído de "POESIAS" de Álvaro de Campo
(Excerto de uma carta de Fernando Pessoa dirigida a Adolfo Casais Monteiro,
sobre a origem dos seus heterônimos. Publicada na revista "Presença", nº 49,
Junho, 1937).
Obras Completas de Fernando Pessoa
Colecção Poesia - Edições Ática
Lisboa - março de 1980

sábado, 16 de abril de 2016

POEMAS COMPLETOS DE ALBERTO CAEIRO (05)....

                       O GUARDADOR DE REBANHOS
                                            XLIX

                       METO-ME para dentro, e fecho a janela.
                       Trazem o candeeiro e dão as boas noites,          
                       E a minha voz contente dá as boas noites.
                       Oxalá a minha vida seja sempre isto:
                       O dia cheio de sol, ou suave de chuva,
                       Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,
                       A tarde suave e os ranchos que passam
                       Fitados com interesse da janela,
                       O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
                       E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
                       Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
                       Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,
                       E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.
                                                                                          pag. 91

Obs.: O GUARDADOR DE REBANHOS é composto de 49 poemas.....
Foram postados 4 poemas....( I - II - XX - XLIX)

ALBERTO CAEIRO: heterônimo de Fernando Pessoa

O poema acima foi extraído de: Ficções do Interlúdio/1
Poemas completos de Alberto Caeiro
3ª Edição
Editora Nova Fronteira


sexta-feira, 15 de abril de 2016

POEMAS COMPLETOS DE ALBERTO CAEIRO (04)....


                                                       O GUARDADOR DE REBALHOS
                                                                         (1911-1912)

             O TEJO é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
             Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia             
             Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

             O Tejo tem grandes navios
             E navega nele ainda,
             Para aqueles que veem em tudo o que lá não está,
             A memória das naus.

             O Tejo desce de Espanha
             E o Tejo entra no mar em Portugal.
             Toda a gente sabe disso.
             Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
             E para onde ele vai
             E donde ele vem.
             E por isso, porque pertence a menos gente,
             É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

             Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
             Para além do Tejo há a América
             E a fortuna daqueles que a encontram.
             Ninguém nunca pensou no que há para além
             Do rio da minha aldeia.

             O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
             Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
                                                 pag. 60

Alberto Caeiro: heterônimo  de Fernando Pessoa
Poema extraído do livro: Ficções do Interlúdio/1
de Alberto Caeiro
3ª Edição
Editora Nova Fronteira
1980
         

sábado, 9 de abril de 2016

POEMAS COMPLETOS DE ALBERTO CAEIRO (03)....



                                                                                   II

                                 O MEU OLHAR é nítido como um girassol.
                                 Tenho o costume de andar pelas estradas
                                 Olhando para a direita e para a esquerda,
                                 E de vez em quando olhando para trás....
                                 E o que vejo a cada momento
                                 É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

                                 E eu sei dar por isso muito bem...
                                 Sei ter o pasmo essencial
                                 Que tem uma criança se, ao nascer,
                                 Reparasse que nascera deveras...
                                 Sinto-me nascido a cada momento
                                 Para a eterna novidade do Mundo...

                                 Creio no mundo como num malmequer,
                                 Porque o vejo. Mas não penso nele
                                 Porque pensar é não compreender...
                                 O Mundo não se fez para pensarmos nele
                                 (Pensar é estar doente dos olhos)
                                 Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

                                  Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
                                  Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
                                  Mas porque a amo, e amo-a por isso,
                                  Porque quem ama nunca sabe o que ama
                                  Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

                                  Amar é a eterna inocência,
                                  E a única inocência não pensar...
                                                                            pag. 35

Alberto Caeiro: heterônimo de Fernando Pessoa

Poema extraído do Livro: Ficções do Interlúdio/
Poemas completos de Alberto Caeiro
Fernando Pessoa
3ª Edição
Editora Nova Fronteira
1980
                                 

sexta-feira, 8 de abril de 2016

POEMAS COMPLETOS DE ALBERTO CAEIRO (02)......

                             continuação.....

                        E se desejo às vezes
                        Por imaginar, ser cordeirinho
                        (Ou ser o rebanho todo
                        Para andar espalhado por toda a encosta
                        A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
                        É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
                        Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
                        E corre um silêncio pela erva fora.

                        Quando me sento a escrever versos
                        Ou passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
                        Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
                        Sinto um cajado nas mãos
                        E vejo um recorte de mim
                        No cimo dum outeiro,
                        Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,
                        Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,
                        E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
                        E quer fingir que compreende.

                        Saúdo todos os que me lerem,
                        Tirando-lhes o chapéu largo
                        Quando me veem à minha porta
                        Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
                        Saúdo-os e desejo-lhes sol,
                        E chuva, quando a chuva é precisa,
                        E que as suas casas tenham
                        Ao pé duma janela aberta
                        Uma cadeira predileta
                        Onde se sentem, lendo os meus versos.
                        E ao lerem os meus versos pensem
                        Que sou qualquer cousa natural -
                        Por exemplo, a árvore antiga
                        À sombra da qual quando crianças
                        Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
                        E limpavam o suor da testa quente
                        Com a manga do bibe riscado.
                                                        pag. 34

ALBERTO CAEIRO: Heterônimo de Fernando Pessoa

Poema extraído do livro:
Ficções do Interlúdio/1
Poemas Completos de Alberto Caeiro
Fernando Pessoa.
     3ª Edição
Editora Nova Fronteira - 1980 -

                        

                       


                        
                   

POEMAS COMPLETOS DE ALBERTO CAEIRO (01)......

                                                      O GUARDADOR DE REBANHOS
                                                                      (1911-1912)

                                                                                                                I

                   EU NUNCA guardei rebanhos,
                   Mas é como se os guardasse.
                   Minha alma é como um pastor,
                   Conhece o vento e o sol
                   E anda pela mão das Estações
                   A seguir e a olhar.
                   Toda a paz da Natureza sem gente
                   Vem sentar-se a meu lado,
                    Mas eu fico triste como um pôr do sol
                    Para a nossa imaginação,
                    Quando esfria no fundo da planície
                    E se sente a noite entrada
                    Como uma borboleta pela janela.

                    Mas a minha tristeza é um sossego
                    Porque é natural e justa
                    E é o que deve estar na alma
                    Quando já pensa que existe
                    E as mãos colhem flores sem ela dar  por isso.

                    Como um ruído de chocalhos
                    Para além da curva da estrada,
                    Os meu pensamentos são contentes.
                    Só tenho pena de saber que eles são contentes,
                    Porque, se o não soubesse,
                    Em vez de serem contentes e tristes,
                    Seriam alegres e contentes.

                    Pensar incomoda como andar à chuva
                    Quando o vento cresce e parece que chove mais.

                    Não tenho ambições nem desejos
                    Ser poeta é uma ambição minha.
                    É a minha maneira de estar sozinho.
                                       continua na próxima postagem.....

                   

sábado, 2 de abril de 2016

POESIAS DE ÁLVARO DE CAMPOS (03).....



                      Não estou pensando em nada
                      E essa coisa central, que é coisa alguma.
                      É-me agradável como o ar da noite.
                      Fresco em contraste com o Verão quente do dia,

                      Não estou pensando em nada, e que bom!

                      Pensar em nada
                      É ter a alma própria e inteira.
                      Pensar em nada
                      É viver intimamente
                      O fluxo e o refluxo da vida...
                      Não estou pensando em nada.
                      É como se me tivesse encostado mal.
                      Uma dor nas costas, ou num lado das costas.

                      Há um amargo de boca na minha alma:
                      É que, no fim de contas,
                      Não estou pensando em nada.
                      Mas realmente em nada.
                      Em nada...
                                       pags. 80/81

Álvaro de Campos: heterônimo de Fernando Pessoa

Extraído de Poesias de Álvaro de Campos
Obras Completas de Fernando Pessoa
Colecção Poesia * Edições Ática
Março de 1980

sexta-feira, 1 de abril de 2016

POESIAS de ÁLVARO DE CAMPO.....(02)



                                            A FERNADO PESSOA

                             Depois de ler o seu drama estático "O Marinheiro" em
                                                    "Orpheu I"


                                     
                                          Depois de doze minutos
                                          Do seu drama O Marinheiro,
                                          Em que os mais ágeis e astutos
                                          Se  sentem com sono e brutos,
                                          E de sentido nem cheiro,
                                          Diz uma das veladoras
                                          Com langorosa magia:

            De eterno e belo há apenas o sonho.
                                                         Porque estamos nós falando ainda?

                                           Ora isso mesmo é que eu ia
                                           Perguntar a essas senhoras...
                                                                           pag.215


Poema extraído de POESIAS
de
Álvaro de Campos

OBRAS COMPLETAS DE FERNANDO PESSOA
Colecção Poesia
EDIÇÕES ÁTICA
Lisboa
Março de 1980